
Eça por Helder Oliveira
1. A relação de Eça de Queirós com o Direito é menos linear do que aquilo que uma leitura biografista da sua obra poderia fazer supor. Tal como era próprio do seu tempo e da sua origem social, a formação superior do jovem Eça, em meados do século XIX, tinha no Direito (ou nas Leis, como correntemente se dizia também) o seu destino natural. Não que se tratasse necessariamente, para ele e para os seus companheiros de geração, de encetar uma carreira consagrada à advocacia ou à magistratura. Estudar Direito era, para um jovem de boas famílias, uma forma de confirmação da condição social que não apontava obrigatoriamente para o exercício de uma profissão ou para a dedicação à ciência jurídica enquanto tal. Quando muito, estaria no horizonte dos jovens estudantes de Direito de então a entrada na vida política do Constitucionalismo liberal, com disputa de lugares no Parlamento ou mesmo com acesso ao Governo. O que, bem vistas as coisas, não difere muito daquilo a que nos nossos dias não raras vezes assistimos. Acresce a isto que outras formações académicas de então não tinham o prestígio que hoje lhes reconhecemos. O caso da Medicina é talvez o mais flagrante (voltarei a esta questão).
Num texto muitas vezes citado, em que esboça a autobiografia da sua geração, com Antero de Quental (o “génio que era um santo”) como fulcro da sua atenção, Eça dá a entender claramente que aquilo que de mais relevante aprendeu em Coimbra não ficou a dever-se aos lentes de Direito. Foram outros elementos formativos, envolvidos por uma atmosfera ainda romântica, que marcaram a geração de Eça: “Pelos Caminhos de Ferro, que tinham aberto a Península, rompiam cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França) torrentes de coisas novas, ideias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses humanitários…”.
A essas “coisas novas” e aos nomes que as protagonizavam – Michelet, Hegel, Vico, Proudhon, Victor Hugo, Edgar Poe, Heine e outros mais – contrapunha-se a Universidade, oprimindo os entusiasmos idealistas dos jovens estudantes de então: “Em torno dela [essa geração], negra e dura como uma muralha, pesando, dando sobre as almas, estava a Universidade”; e assim, “a Universidade, ultraconservadora e ultracatólica, era não só uma escola de revolução política, mas uma escola de impiedade moral”, tudo “estimulado” pelos “seus lentes crassos e crúzios, os seus Britos e os seus Neivas, o praxismo poeirento dos seus Pais Novos, e a rija penedia dos seus Penedos!” Convém, entretanto, relativizar: esta imagem da Universidade obedece também a um estereótipo que era ditado, por um lado, pelo olhar romântico do jovem Eça dos anos 60 e, por outro lado, pela feição nostálgica, com algum tempero ficcional, que comandava a evocação feita pelo escritor maduro dos anos 90, quando lhe tocou lembrar o amigo Antero.
Conforme tem sido minuciosamente apurado pelos biógrafos de Eça, este que viria a ser o nosso maior romancista rapidamente se apercebeu de que a sua vocação e o seu rumo profissional não estavam no Direito. Com razão e em tom eufemístico, Rui de Figueiredo Marcos notou: “Convicto de que não seria através do método de decorar, à luz do azeite, um papel denominado ‘sebenta’ que conseguiria distinguir, juridicamente, o justo do injusto, Eça de Queirós decidiu relacionar-se com o mundo. Em boa hora o fez para o mundo das letras”. Mal saído de Coimbra e depois de um breve tempo de boémia lisboeta e da concomitante iniciação na literatura e no jornalismo (designadamente, na Gazeta de Portugal e no Distrito de Évora), Eça encetou a sua carreira consular, tendo sido colocado em Havana, em 1872.
2. Deixando de lado o Direito como carreira e como ciência, Eça de Queirós não o abandonou como romancista; é esta condição que me interessa, mais do que os acidentes e os incidentes da biografia. Pode dizer-se, então, que, enquanto ficcionista, Eça não esqueceu o Direito, os seus qualificados atores e o seu lugar na sociedade portuguesa; isso não quer dizer que este seja (porque não é) um âmbito temático com a relevância assumida por outros na obra queirosiana.
Curiosamente, é um episódio judicial que podemos ler, num dos primeiros e ainda imaturos relatos de Eça: o conto “O Réu Tadeu”, publicado de forma incompleta em 1867, no Distrito de Évora, nos números 55 e 56, de 18 e 21 de julho (inserto no volume Contos I, edição de Marie-Hélène Piwnik; Lisboa: Imprensa Nacional, 2009). Trata-se da história da condenação à morte e da execução, por enforcamento, de Tadeu Esteves, enquadrada por um cenário e por uma coloração estilística que lembram, de forma muito nítida, alguns temas e também uma certa entoação dos folhetins da Gazeta de Portugal. Isso não obsta a que perpasse no relato uma imagem negativa do sistema judicial: Tadeu Esteves fica preso “durante um ano, enquanto na escuridão dos tribunais, os códigos e as leis, entre toda a sorte de tédios e de indolências, lhe pregavam as tábuas do esquife”. A seguir, vem o julgamento; nele, “os letrados fizeram as suas alegações dolentes e pesadas, e depois do aparato gótico da lei, acesas as velas de cera, mandaram erguer o preso, para ouvir a sentença”. Em “O Réu Tadeu”, resume-se praticamente a isto a referência à administração da justiça e aos seus agentes, uma referência que, repito, não leva a formular um juízo propriamente lisonjeiro.
Noutros momentos e episódios da ficção queirosiana, aflora o “aparato gótico da lei”, quase sempre diretamente associado a figuras como o advogado e o magistrado. De nenhuma destas condições profissionais emergem, contudo, tipos sociais com o vigor expressivo do conselheiro Acácio, de Juliana, do cónego Dias, de Tomás de Alencar, do conde de Gouvarinho ou das manas Lousadas. Quando associadas ao Direito, várias personagens de Eça não existem ficcionalmente em função da ciência jurídica e da sua prática, mas sim de outras funções eventualmente derivadas dela. Veja-se o caso de Gonçalo Mendes Ramires: a sua formação jurídica de “bacharel formado com um R no terceiro ano” de pouco lhe serve, na preguiçosa inércia vivida como Fidalgo da Torre, inércia cortada apenas pela esforçada composição de uma novela histórica. Quando muito, Gonçalo alimenta planos orientados para conseguir uma posição de destaque na vida política; é nesses planos rapidamente frustrados que ecoa (e não mais do que isso) a formação jurídica: “Depois, trepando da Invenção para o terreno mais respeitável da Erudição, daria um estudo (que até lhe lembrara no comboio, ao voltar de Lisboa!) sobre as Origens Visigóticas do Direito Público em Portugal… (…) Depois, saltando da Erudição às Ciências Sociais e Pedagógicas – porque não amassaria uma boa Reforma do Ensino Jurídico em Portugal em dois artigos maçudos, de homem de Estado?…”
Não menos significativa do que o alheamento de Gonçalo Mendes Ramires é a escolha da carreira que o jovem Carlos da Maia há de seguir, uma escolha comentada em Santa Olávia. Tendo revelado, desde cedo, “uma grande queda para a medicina”, Carlos decide, com o apoio do avô, ser médico e não jurista; contudo, fica claro que “esta inesperada carreira de Carlos (pensara‑se sempre que ele tomaria capelo em Direito) era pouco aprovada entre os fiéis amigos de Santa Olávia”. A reação de Afonso da Maia, perante aquela desaprovação (em particular, et pour cause, a do juiz de Direito), é modelar: ” — Ora essa! exclamou Afonso. E porque não há de ser médico a sério? Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo‑o para ser útil ao seu país… / — Todavia, arriscou o dr. juiz de Direito com um sorriso fino, não lhe parece a V. Ex.ª que há outras coisas, importantes também, e mais próprias talvez, em que seu neto se poderia tornar útil?… / — Não vejo, replicou Afonso da Maia. Num país em que a ocupação geral é estar doente, o maior serviço patriótico é incontestavelmente saber curar.”
(C. Reis, “O ‘aparato gótico da lei’. Eça de Queirós e o Direito”, in A. Paula Arnaut, org., As Palavras Justas. Ensaios sobre Literatura e Direito. Coimbra: Minerva, 2020; texto integral aqui)

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