Fradique e Eça

Afinal de contas, quando nasceu Fradique Mendes? E, numa expressão  deliberadamente ambígua, como foi ele concebido?

Anos depois do affaire antropófago, ressurge Carlos Fradique Mendes. O mesmo? Vamos por partes, porque a “ressurreição” de Fradique tem várias facetas. As  cartas a Oliveira Martins vêm a ser os lugares privilegiados para o anúncio do renascimento de uma figura agora, apesar de tudo, mais séria. Digo desde já: o segundo Fradique Mendes, chamemos-lhe assim, está no caminho que leva aos heterónimos pessoanos e, antes deles, por coincidências apreciáveis, ao semi-heterónimo Bernardo Soares. Não são irmãos,  mas são da mesma família.

Vejamos os factos: em meados de 1885, Eça de Queirós propõe a Oliveira Martins a publicação de “uma série de cartas sobre toda a sorte de assuntos, desde a imortalidade da alma até ao preço do carvão, escritas por um certo grande homem que viveu aqui há tempos, depois do cerco de Troia e antes do de Paris, e que se chamava Fradique Mendes!” E acrescenta: “Não te lembras dele? Pergunta ao Antero. Ele conheceu-o”. Claro que sim:  foram cúmplices e  ambos eram açorianos. Ora este Fradique Mendes, “homem distinto, poeta, viajante, filósofo nas horas vagas, diletante, e voluptuoso (…) morreu”. Nada melhor, diz Eça a Oliveira Martins, para celebrar esta personalidade do que publicar-lhe a correspondência.

Em 1888, ano em que publica Os Maias, Eça de Queirós volta a escrever a Oliveira Martins, mas agora vai mais longe: não é possível “editar a correspondência de Fradique, sem a preceder de um estudo sobre esta singular personalidade”. Assim mesmo, “um estudo”. Aparentemente, Oliveira Martins não percebeu  o que aqui estava em causa e Eça teve de se explicar. Assim:  “A introdução a «Cartas que nunca foram escritas por um homem que nunca existiu, não podia deixar de ser uma composição em que se tentasse dar a esse homem, primeiramente, realidade, corpo, movimento, vida”. Repito: dar “realidade, corpo, movimento, vida” a um “homem que nunca existiu”.

É esta a certidão de nascimento literário de Carlos Fradique Mendes, datada de 12 de junho de 1888, como está na carta de Eça a Oliveira Martins. Exatamente: 12 de junho, véspera daquele 13 de junho do mesmo ano de 1888 em que nasceu uma criança depois batizada como Fernando António Nogueira Pessoa. E assim, por 24 horas apenas, Fradique antecipou-se a  Pessoa.

Fradique Mendes tem uma biografia, uma formação, uma poética e um pensamento próprios e  autónomos em relação a  quem o concebeu. Pelo tal “estudo”, sabemos que Fradique  nasceu na ilha Terceira, que “pertencia a uma velha e rica família dos Açores” e que ali foi criado por uma avó  extravagante. Dessa D. Angelina Fradique diz-se  que era uma “velha estouvada, erudita e exótica que colecionava aves empalhadas, traduzia Klopstock, e perpetuamente sofria dos «dardos de amor»”.  Depois de frequentar uma escola  chamada Terceirense e de receber uma “primeira educação (…) singularmente emaranhada”, aos dezasseis Carlos Fradique Mendes é despachado para Coimbra. Pelo critério de Dona Angelina, a Universidade de Coimbra era  “um nobre centro de estudos clássicos e o derradeiro refúgio das humanidades.” A verdade, segundo constava na ilha, era outra: “apesar dos sessenta anos que lhe revestiam a face de um pelo mais denso que a hera de uma ruína, [D. Angelina] decidira afastar o neto – para casar com o boleeiro.”

Em Coimbra, Carlos Fradique pouco estudou. “Tocou guitarra pelo Penedo da Saudade, encharcou-se de carrascão na tasca das Camelas, publicou na «Ideia» sonetos ascéticos, e amou desesperadamente a filha de um ferrador de Lorvão.” A seguir,  “foi para Paris estudar Direito nas cervejarias que cercam a Sorbona, à espera da maioridade que lhe devia trazer as heranças acumuladas do pai e da avó”.

O resto é mais ou menos conhecido: lançado no mundo, Fradique foi viajante e esteta, dândi e poeta reservado, aventureiro e putativo autor de prosas inéditas, companheiro de Garibaldi e confidente de Victor Hugo. Tudo isso e também amante de mulheres magníficas: da “gloriosa Ana de Léon, a mais culta e bela cortesã (Vidigal [o amigo e patrício de Fradique] dizia «o melhor bocado») do Segundo Império”; da misteriosa Madame Lobrinska,  legatária  dos seus papéis;  e, acima de todas elas, de Clara,  dona de uns  “olhos finos e lânguidos”, que a  Carlos Fradique Mendes mereceram a mais  admirável carta de amor que a língua portuguesa já conheceu.

Tudo isto sabemo-lo pela  introdução d’A Correspondência de Fradique Mendes, o tal “estudo” que é mais do que isso:  trata-se de uma biografia, bem documentada e bem atestada, para que dúvidas não fiquem acerca da existência (“realidade, corpo, movimento, vida”) desta figura. Quem nessa biografia nos fala é uma voz não identificada, que  só por distração poderíamos confundir com Eça de Queirós. Trata-se, isso sim, de  alguém que muito bem conheceu Fradique Mendes  e que  o revela aos seus concidadãos,  pela publicação das cartas. “Nos tempos incertos e amargos que vão”, diz o biógrafo, “portugueses destes não podem ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez de um mármore.” Assim é, de forma que bem podemos dizer que está nestas “Memórias e Notas” a substância de que se faz a recordação de um mestre. Como Alberto Caeiro o foi para Álvaro de Campos.

(“Conversa entre heterónimos”. “Tudo Língua”, Coimbra, 4.12.2015. Por ocasião do Congresso Internacional “Língua Portuguesa: uma Língua de Futuro”).

Frederico Batista _IMG_7019

 Foto de Frederico Batista, cedida pelo jornal Público

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