1. Se há questão que domina toda a obra queirosiana, em cerca de 35 anos de vida literária, essa questão é a questão social. Evidentemente que, colocado o problema nestes termos, pouco significa a asserção enunciada, pois que, no fundo, a muitos outros escritores ela poderia convir, designadamente aos que consideramos companheiros de geração do autor d’Os Maias.
Como Eça de Queirós, também Antero e Ramalho Ortigão, Junqueiro e Oliveira Martins colocaram no centro das suas respetivas práticas culturais as questões sociais: em registo de ensaio pedagógico, em discurso historiográfico, em romances críticos, em poesia panfletária ou em odes de inflamado visionarismo social, as práticas culturais da chamada Geração de 70 giram em torno de eixos temáticos que diretamente têm que ver com a conformação da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX e com as reformas que ela requeria. E assim, da condição temporal do clero à situação da mulher, do jornalismo à política, da cultura literária romântica ao estado das escolas e do ensino, da administração da justiça à instituição militar, da emergência de um proletariado ativo às fragilidades da indústria e do sistema financeiro, pode dizer-se que a Geração de 70 lançou sobre a vida social portuguesa do seu tempo o mais incisivo, crítico e abrangente olhar que alguma vez foi consagrado por um grupo de intelectuais ao seu país.
Por alguma razão, desse conjunto ilustre que foi a Geração de 70 é precisamente Eça de Queirós o autor que com nitidez continua a dar-nos um testemunho de empenhamento social extremamente sugestivo. De tal modo que o famoso tema da atualidade de Eça (muitas vezes postulada como limitativa confrontação linear de figuras e de situações, do passado e do presente) gira por sistema em torno da questão social: nos seus romances, nas suas farpas, nas suas cartas e nos seus textos polémicos, ecoa um discurso social a que o escritor ao mesmo tempo deu voz e serviu de caixa de ressonância.
2. A abordagem da questão social, tal como a encontramos analisada por Jaime Cortesão no já clássico Eça de Queirós e a Questão Social, que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda acaba de reeditar, não corresponde a uma análise convencional ou previsível. Pelo contrário: um dos méritos deste livro – tendo-se em conta, naturalmente, a época em que originariamente foi publicado (1949) – consiste em valorizar textos e componentes da produção queirosiana até então pouco visitados ou objeto de uma atenção escassamente inovadora.
Vale a pena recordar as circunstâncias em que foi composto este ensaio ou conjunto de ensaios, como se preferir. Foi durante o seu exílio brasileiro que Cortesão escreveu os textos que integram o presente volume, tendo como origem uma conferência, depois amplamente desenvolvida. E se é certo que o conjunto pode ressentir-se da “distância forçada” a que o autor se refere na “Nota Final”, não é menos certo, por outro lado, que são evidentes aqui os atributos de um discurso ensaístico que vale pelas suas propriedades: indagação e tentativa interpretativa, escasso ou mesmo nulo aparato erudito, afirmação da voz do ensaísta em diálogo com a palavra do escritor, com os seus temas e com os seus valores.
O conjunto de textos produzidos acaba por revelar uma unidade apreciável. Fator decisivo para que se atinja essa unidade é a forma como se entende e problematiza a questão social em Eça. Deter-me-ei neste aspeto da análise assinada por Jaime Cortesão, a começar pela forma como se estrutura o seu livro.
3. No seu início, encontram-se considerações sobre o “condicionalismo de classe e o escritor”, considerações que derivam para o conhecido problema das dificuldades financeiras experimentadas por Eça, praticamente ao longo de toda a vida. Depois de uma incursão pelo fradiquismo e pela sua vivência amorosa, o ensaio centra-se naquele que é o seu núcleo axial: a interpretação queirosiana do socialismo, progressivamente entrecruzada com o franciscanismo, com a hagiologia e com a emergência de uma “nova mística”, de que se ocupa o último capítulo do livro.
Como se vê, pouco ou nenhum tributo é devido às questões sociais aparentemente mais óbvias em Eça, questões que, à época em que Cortesão compôs o seu ensaio, ocupavam um lugar destacado na exegese queirosiana, aquela que privilegiava o realismo queirosiano, a sua crítica social e o retrato de costumes decadentes; para uma tal exegese, eram esses os aspetos mais significativos da obra queirosiana, em especial quando analisados por estudiosos da feição ideológica de António José Saraiva ou de Mário Sacramento, cujos estudos são praticamente contemporâneos do de Cortesão.
À época em que foi pensado e escrito este Eça de Queirós e a Questão Social, esse a que chamamos o último Eça não assumira ainda a relevância que presentemente lhe reconhecemos, quando valorizamos os significados temáticos e formais do fradiquismo (em que, contudo, António José Saraiva fizera uma incursão fundadora, no seu As Ideias de Eça de Queirós), de um romance como A Cidade e as Serras ou da revisão ideológica do Positivismo. Do mesmo modo, os santos e a santidade contemplados em contos e sobretudo nas póstumas Lendas de Santos permaneciam em segundo plano; um injusto segundo plano de onde o estudo de Jaime Cortesão veio retirá-los.
4. A figura de S. Cristóvão é o eixo em torno do qual gira o ensaio de Jaime Cortesão.
É a partir do santo e do pensamento social dele deduzido que se problematiza a fé religiosa, em termos muito distanciados do anticlericalismo queirosiano dos anos 70 e ainda 80, que Jaime Coresão relaciona com o reajustamento das condições de classe de Eça, em função do casamento, mas também de outros fatores: o artificialismo e a decadência que, para Eça , marcavam a arte finissecular, bem como uma outra decadência, que era a da pátria portuguesa, atestada no humilhante episódio do Ultimato inglês.
Num tal contexto, Jaime Cortesão sublinha o significado, por um lado, da renovação idealista da filosofia (na ressaca da crise ideológica do Positivismo) e, por outro lado, de um certo alargamento do conceito de religião, com extensão ao plano da praxis política. Para isso contribuem personalidades como Paul Sabatier, que em 1893 publicara a sua biografia de S. Francisco de Assis, ou o papa Leão XIII, que ao seu pontificado incutiu a dinâmica interventiva que é conhecida. Vale a pena lembrar que é logo depois da encíclica Rerum Novarum (1891) e no mesmo ano da biografia consagrada por Sabatier a S. Francisco de Assis que Eça publica “Positivismo e Idealismo” (1893), texto em que expressamente declara, quase a terminar: “Nunca mais ninguém, é certo, tendo fixo sobre si o olho rutilante e irónico da ciência, ousará acreditar que, das feridas que o cilício abria sobre o corpo de S. Francisco de Assis, brotavam rosas de divina fragrância. Mas também, nunca mais ninguém, com medo da ciência e das repreensões da fisiologia, duvidará em ir respirar, pela imaginação, e se for possível colher, as rosas brotadas do sangue do santo incomparável.”
Este é, pois, para Eça e para o seu tempo, um momento de mudança. Segundo Cortesão, o degelo espiritual que favorece essa mudança em Eça começara entre 1885 e 1888, época do reaparecimento de Fradique, quando a fidelidade ao socialismo se ia tornando um imperativo moral, cruzado com a revivescência dos altruístas valores cristãos; daí o conceito de socialismo cristão, entendido como atitude ideológica fundamental no último Eça, permitindo a Jaime Cortesão afirmar, no final do capítulo VII do seu livro: “Eça (…) viu na santidade franciscana a sublimação do socialismo e transformou uma tradição nacional em visão cosmopolita do futuro”.
A génese e escrita do relato S. Cristóvão (que surge, segundo Cortesão, entre 1894 e 1897) são parte integrante e nuclear da resposta queirosiana à questão social. Ao mesmo tempo, a mensagem espiritual do santo e as suas afinidades franciscanas não se confundem com a esterilidade de uma ascese divorciada da questão social. Em alternativa a essa ascese, afirma-se uma nova mística, fundada nas qualidades do Cristianismo; o franciscanismo permite fazer a passagem de Cristo à Natureza e proclamar uma mensagem evangélica feita de pragmatismo, de tolerância e de abdicação do eu, na linha do tolstoísmo e antecipando-se ao pensamento e à ação de Gandhi. Como quem diz: conjugando o ideal religioso com a santidade civil.
5. Se outras qualidades não houvesse em Eça de Queirós e a questão social, haveria que destacar no livro, em termos globais, o equilíbrio com que o autor articula os três vetores fundamentais em que se sustenta a sua leitura de Eça: o conhecimento ponderado da biografia queirosiana, o domínio da história das ideias dos finais do século XIX e as qualidades do ensaísta dotado de extraordinária intuição exegética e de apreciável capacidade de síntese.
É essa capacidade de síntese que, por fim, permite a Jaime Cortesão fixar, com aguda penetração, as qualidades mestras do grande escritor que foi Eça de Queirós: a sensibilidade que em Eça se evidencia, a atenta orientação para as grandes preocupações do seu tempo, a fidalguia moral e uma suprema capacidade criativa que lhe permitiu “traduzir por forma nova as impressões recebidas”. Tudo isso “e, conjuntamente, um Eça muito português: sensualista, antes que realista; idealista, antes que romântico; cordial e irónico; possesso de inquietação, sempre à busca de horizontes novos; e irremediavelmente guiado por um ideal cavalheiresco, como esses velhos fidalgos, que caem na miséria, mas permanecem inadaptáveis às objetividades utilitárias da vida”.
(Carlos Reis; 2001)
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/ 4 de Abril de 2013you’re blog is so well organized, congratulations.
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/ 11 de Abril de 2013really an amazing article to read.