Eça e o Oriente

Por uma Ásia mais próxima do que o Japão ou a China fizera Eça de Queirós, em 1869, uma jornada decisiva para o seu futuro literário. Ocorreu essa jornada num momento histórico: a 17 de novembro daquele ano, era inaugurado o Canal do Suez, gigantesca obra de engenharia que havia de mudar  os equilíbrios estratégicos mundiais, nos planos político e comercial e no que toca às  relações da Europa com o Oriente. Eça estava lá, com o seu amigo e futuro cunhado, o conde de Resende, e deu nota disso, como repórter, no Diário de Notícias; e assim, em quatro números do jornal, de 18 a 21 de janeiro de 1870,  esse que era um romancista ainda em formação, fez, como ele mesmo disse, “o relatório chato das festas de Port Said, Ismailia e Suez.” E anunciou: “Talvez em breve diga o que é o Cairo e o que é Jerusalém na sua crua e positiva realidade, se Deus consentir que eu escreva o que vi na terra dos seus profetas.” (Queirós, s.d.b: 5)

Com efeito, de acordo com  um testemunho de Ramalho Ortigão, Eça  projetou um livro de título prometedor,  Jerusalém e o Cairo, livro que, contudo, nunca chegou a ser  publicado – porque não foi escrito. Mas  daquele projeto sobreviveram materiais e não foram poucos, esboçados num registo temático e discursivo ainda corrente e apreciado no século XIX, o da narrativa de viagem (nota tempestiva: no plano da Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, existe uma secção que justamente acolhe estes materiais). Os manuscritos, postumamente publicados pela família do escritor, no volume O Egito (de 1926) e em Folhas Soltas (de 1966), dão notícia não apenas de um observador muito atento a  espaços, a figuras e a fenómenos sociais novos para ele, ao mesmo tempo que deixam transparecer um certo fascínio pelo Oriente, em particular aquele que exibia a aura de ser o berço do Cristianismo.

É claro que, ao viajar pela Síria e pela Palestina, Eça não levava consigo apenas um companheiro e mais a bagagem material que qualquer viajante transporta; uma outra “bagagem”, esta de natureza literária, acompanhava o jovem escritor em formação. Refiro-me sobretudo a modelos e a nomes franceses, por exemplo, à Voyage en Orient de Gérard de Nerval, de 1851, a Constantinople de Théophile Gautier, de 1853, ou a Le Nil (Égypte et Nubie), de Maxime du Camp, resultado de uma viagem realizada entre 1849 e 1851 na companhia de Flaubert,  que deu lugar àquele volume, em 1854. Ao volume e a fotografias, novidade importante na época, sobretudo se pensarmos que Du Camp levava consigo uma  máquina calótipo, câmara portátil  que, gerando negativos (diferentemente do daguerreótipo), permitia a reprodução da imagem fixada. Noutros termos: o misterioso Oriente começava a ser visível a mais do que um título.

(De “Eça de Queirós e o Oriente”, in Portugal-China: 500 anos. Lisboa: BNP/Babel, 2014, pp. 221-225; texto integral).

Eça estava lá e deu nota disso,  no Diário de Notícias;

Eça estava lá e deu nota disso, no Diário de Notícias

 

 

Eça e o Oriente

David           No tempo de Eça de Queirós, o Oriente estava na moda. E também na ordem do dia, do ponto de vista político, pois que por lá se decidiam questões relevantes de que dependiam poderes imperiais e interesses económicos. Mas nesse mesmo  tempo, o Oriente era vastíssimo e incluía muitas terras, muitas gentes e muitas culturas. Do chamado Próximo Oriente ao Japão, dito do Sol Nascente para quem o considerava a partir de um lugar de observação eurocêntrico, iam distâncias consideráveis. Entre a Europa e o Japão estava o Império do Meio (entenda-se: no centro do planeta),  ou seja, a China que resistia aos ventos da Revolução Industrial e que só pela força militar usada nas chamadas Guerras do Ópio se foi abrindo ao comércio com o Ocidente. A pouco e pouco,  os estrangeiros deixaram de ser, como até então, “bárbaros”. Arrastam-se estas tensões e os derivados conflitos bélicos por várias décadas, ao longo do século XIX, com consequências que o Eça da segunda metade de oitocentos conhecia bem, sendo, como era, leitor atento da melhor imprensa de então.

Como quer que seja, o Oriente – e sobretudo o mais longínquo dele – conservava um exotismo e um mistério a que só raros viajantes acediam. Na época, não havia ainda o banal turista massificado de hoje, mas o endinheirado e culto touriste, assim à francesa, como Eça escrevia. Não espanta, por isso, que, afastando-se de uma Lisboa que  assistira ao trágico colapso moral da família dos Maias, Carlos Eduardo  e João da Ega, os dois “simpáticos touristes”, como se lê no capítulo final d’Os Maias, tenham alargado os passos e as vistas até à China e ao Japão. Quando regressa, Ega aproveita o impulso de viajante e exibe, na pacata Lisboa dos fins dos anos 70, uma familiaridade com o Oriente bem própria de quem queria embasbacar os concidadãos: “Vinha esplêndido, mais forte, mais trigueiro, soberbo de verve, num alto apuro de toilette, cheio de histórias e de aventuras do Oriente, não tolerando nada em arte ou poesia que não fosse do Japão ou da China, e anunciando um grande livro, o «seu livro», sob este título grave de crónica heroica – «Jornadas da Ásia».” (Queirós, s.d.a: 689)

Não se sabe se Ega chegou a escrever o tal livro, ele que foi sobretudo um escritor não consumado. O que se sabe é que Eça de Queirós viveu uma experiência similar, porventura projetada na sua personagem, enquanto viajante que muito observou, prometeu pelo menos um livro, mas não o publicou. O que não significa que, no plano da escrita, Eça se tenha reduzido ao silêncio.

(A publicar)

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