A Madame de Jouarre
Lisboa, começos de setembro
Minha boa Madrinha:
Em veraneio por esta Lisboa encalorada, aproveito para lhe dar conta das novas e mandados com que esta capital do Reino nos tem brindado nos últimos tempos; de sobra sei que a minha Madrinha não toleraria que outros lhas confidenciassem, mesmo com zelo semelhante ao meu. E como, mais do que o tremendo olhar de Medusa, temo o sobrolho franzido pelos seus amuos, aqui venho, pressuroso e obrigado, depor no seu regaço os tais mandados e as tais novas.
Não padeço da loquaz coscuvilhice de bondosa comadre que a outra comadre revela os segredos da vizinhança; em vez disso, motiva-me o esforço que há longo tempo venho fazendo para entender Portugal e os portugueses. Não é tarefa ligeira, posso assegurar. Coisas que aqui se passam dificilmente encontram parecença com proezas que a História desveladamente guarda, bem aferrolhadas sob o pó dos seus arquivos e nos ponderosos volumes que lhes consagrou. No século que foi o meu, pude testemunhar acontecimentos tão extraordinários como as revoluções que em 48 mudaram o curso secular da velha Europa, a guerra da Crimeia, a ira do grande Hugo contra Napoleão le Petit, a navegação do Suez e o desastre da Comuna. Nada se compara, contudo, com episódios que nas últimas semanas têm agitado o dia a dia da minha Pátria e dos meus patrícios.
Saberá a minha madrinha que os portugueses têm vivido, nos últimos meses, com a angustiada preocupação de saberem qual será, por fim, o destino de um certo político que durante anos os governou. Aparentemente em vias de ser acusado de malfeitorias que, jura ele e juram os seus competentes causídicos, jamais cometeu, este homem representa bem, et pour cause, aquilo a que os plumitivos de serviço chamam, com a originalidade que os distingue, a “classe política”. Segundo os meus concidadãos, pertencem a essa “classe” todos aqueles que, intrigando no Parlamento, discreteando em gabinetes ministeriais ou travando esganiçadas batalhas eleitorais, persistem em pôr alguma ordem (ou o que eles entendem como tal) nesta minha terra de doce clima. Os meus compatriotas reservam a esta “classe política” o desprezo que provém de pensarem, praticamente sem exceção que se conheça, que ela fervilha de “gatunos”; ou que, no dizer de uma minha serviçal, “eles querem é governar-se”. Não trato de esmiuçar agora se algum grão de verdade alimenta estas conjeturas, porque o caso que lhe ofereço nestas linhas desataviadas é mais flagrante – e bem apetitoso!
A figura de quem tanto se fala esteve encarcerada durante largos meses, por ordem de uma Justiça que, para uns, foi indolentemente branda, enquanto, para outros, tem mostrado mais crueldade do que Nero enfurecido com os primeiros Cristãos. Ignoro qual das duas fações tem razão. Ignoro-o eu e ignora-o o professor Marcelo, coisa que sobremaneira me conforta o sono porque assim me acho tutelado pela companhia perspicaz do grande Comentador. O que sei é que nunca a prisão de alguém – para mais um “político”! – agitou tantas emoções e desatou tantos comentários. Não há talvez um só português que não tenha já exarado sobre o homem um veredicto definitivo! Mesmo este seu dedicado afilhado, depois de laboriosas congeminações, vai engendrando uma convicção firme quanto às acusações que sobrecarregam os ombros da criatura. Nisto, devo acrescentar, somos todos ajudados pelas gazetas (e em especial por um matutino com grande aceitação e esforçados informadores) que diariamente nos trazem notícia de novas aleivosias e de novas cumplicidades, prontas a serem assacadas ao pobre arguido.
O caso que sobre todos os outros motiva esta minha epístola aconteceu há alguns dias e trouxe de novo a tal personagem (mas não só ela!) para o centro daquilo a que os periodistas chamam “espaço mediático”. Tendo sido aliviado da frieza do cárcere em que jazia, o nosso homem foi colocado naquilo a que prosaicamente se chama “prisão domiciliar”, um conforto que lhe dá direito a ostentar à porta (ou nas escadas, não posso precisar) um garboso polícia. Situada numa sossegada rua de Lisboa, a discreta casa que assim serve de “prisão domiciliar” foi objeto, desde logo, da voracidade noticiosa de jovens repórteres que, de câmara e microfone em punho, ali montaram um cerco mais tenaz do que o assédio que por dez anos sitiou os muros de Troia.
Acabou-se, pois, a pacatez daquela rua e daquela casa, para gáudio da vizinhança (que legitimamente aspira a “aparecer na televisão”) e sobretudo do “Cantinho do Abade”, pitoresca casa de comidas e bebidas que ali está paredes meias com o tal domicílio. Com razão o digno proprietário do “Cantinho” esfrega já as mãos de contentamento, regalado com uma tão inesperada publicidade. E de facto, logo no princípio da noite em que este caso começou, estava a rua enxameada de repórteres; ali foram eles conduzidos por uma intuição luminosa, pois que de outro modo nunca saberiam quem naquela casa obrigadamente passava a residir e nem testemunhariam o que se seguiu.
Imagina a minha madrinha que foi o tal político a colher a atenção dos repórteres? Engana-se e engana-se redondamente, como os seus claros olhos poderão ver e rever! Quem ali foi entrevistado e minuciosamente filmado foi o expedito funcionário de uma empresa de pizzas! Nem mais, minha madrinha! O rapaz da pizza, ostentando o seu elmo de motociclista elegantemente descaído sobre a nuca, para que o seu rosto agora famoso ficasse bem à vista de todos.
Ao que parece, o tal político teve a veleidade de, nas suas primeiras horas de quase liberdade, encomendar uma iguaria que lhe confortasse o estômago, desconsolado como estava pelos meses em que teve de se contentar com as austeras ementas prisionais. Em má hora o fez – para ele, porque acabou por ficar sem a encomenda. Mas em boa hora o decidiu, para o tal mancebo, que é hoje uma figura famosa para uma boa parte dos portugueses que seguem estes incidentes com atenção gulosa.
Adivinho daqui a sua perplexidade e bem compreensível é ela. Não há, com efeito, palavras que decentemente relatem os cinco minutos de fama que o Destino reservou a um jovem até então mais estranho às massas do que para mim o é a remota gramática do sânscrito; só mesmo o grande Balzac e a pena com que ergueu, para nossa ilustração, todo um mundo de carateres e de paixões, só ele poderia descrever com precisão e com verdade o rosto atónito e quase divertido do moço metido em tais apertos. Limito-me, por isso, aos breves traços que a minha inépcia de cronista improvisado consente.
Ao chegar à porta número 33, com o intuito de entregar a sua mercadoria, e não tendo tido a intuição dos repórteres (e, portanto, desconhecendo não ao que ia, mas a quem ia…), foi o moço prontamente intercetado por câmaras de filmar, por microfones sequiosos e por perguntas em catadupa: quem tinha feito a encomenda? A que andar iria ela subir? Sabia ele a quem os víveres se destinavam? E mais: que condimentos temperavam a pizza? Perante estas ingentes questões, o rapaz olhou com desconfiança risonha aquele bando de perguntadores e só pôde manifestar a inocente surpresa de quem inopinadamente se vê em semelhantes assados. De todas as perguntas só encontrou resposta para uma: a pizza era de extra-queijo e pepperoni, uma informação, minha madrinha, que os historiadores e os sociólogos que atentamente nos esperam lá no futuro não se atreverão a descurar. Extra-queijo e pepperoni! Adivinho daqui os sisudos ensaios que os ditos sociólogos hão de compor, achando-se na posse de tal informação; e imagino que surpreenderão os vindouros com títulos tão suculentos como Hábitos alimentares em prisão domiciliar nos começos do século XXI; ou Influência do extra-queijo no Direito Penal e em sua arquitetura jurídica; e ainda, Indigestões de pepperoni em contexto de indagação criminal: novos contributos.
A minha madrinha sorri, por certo. Mas não deixará de reconhecer que este jovem que trago ao seu conhecimento é, mesmo contra a sua vontade, um benemérito digno da nossa efusiva gratidão. Sobejamente a merece ele, que mais não seja pela clareza com que encerrou o episódio. Perguntado sobre se iria comunicar a impossibilidade de entregar a comida à sua cadeia (de produtos alimentares, como queria dizer a atabalhoada repórter), de pronto respondeu: “Cadeia? Esperem aí, eu não estou preso!”
Porque, por fim, a pizza não foi entregue e o extra-queijo e mais o pepperoni falharam o alvo a que iam dirigidos! Por lamentável esquecimento, faltava àquele Mercúrio das pizzas uma identificação que, bem nítida e bem eloquente, dissesse às forças da autoridade quem ele era de facto. Deus sabe, terão pensado os espertos guardiões do número 33 e do seu residente, que engenhos e que artimanhas podem esconder-se nas vastas caixas de cartão que levam as pizzas de porta em porta.
Assistindo a tudo o que bem imperfeitamente lhe narro, uma amiga minha, pessoa de invejável argúcia e dotes domésticos irrepreensíveis, afiançou-me que nada disto tem a verosimilhança de que outrora falava o velho Aristóteles. Segundo ela, aquele número 33 a que se recolheu a ilustre personagem estará mais do que fornecido de confortos e de mantimentos. A ser assim, a entrega da pizza, garante a minha amiga, teria resultado de uma montagem não destituída de intenção publicitária. Quem tal faria? A cadeia (salvo seja) de comidas? Um provocador político? Um qualquer gracioso desejoso de fama momentânea? Não sei.
O que sei e convictamente sustento é que o meu alegre país está cheio de confortos que lhe asseguram e a quantos tivemos a ventura de aqui nascer um lugar na História dos povos. Veja bem, estimada madrinha: somos servidos, de forma bem diligente e constante, por escribas e por repórteres preocupados com o nosso divertido bem estar e não com as chagas que a vida moderna reserva aos que a observam com o olhar bisonho dos pessimistas. E se pensarmos (como eu penso) que os tais periodistas e os tais repórteres mais não são do que a ágil extensão (ou o braço armado, como diria o velho general Sequeira) da incompreendida e estoica “classe política”, então tudo se conjuga para que aqui desfrutemos daquela aurea mediocritas que os Antigos almejavam. Refugiados em debandada, crise demográfica, ameaças terroristas, bancos em rutura, colapso das bolsas, desemprego de jovens (e de adultos!), impostos que nos massacram, desconjuntamentos da velha Europa tudo isso é secundário, se soubermos gozar a existência amena que por estas gentes nos é oferecida, com generoso altruísmo.
E assim, a despreocupada vida que nos tocou em sorte bem livre está de coisas tenebrosas. Basta que saibamos entreter-nos com os extra-queijos de uma pizza que errou o alvo! Não entendo mesmo por que razão persistem alguns espíritos quezilentos em falar dos males que, segundo eles, nos atormentam, sempre ignorando os esforçados trabalhos do bem falante Coelho e do risonho Portas, a bem da Nação. Se mais não alcançar a bondade lusitana, bem merecem eles, no dia que a Providência o destinar, ser brindados também com uma pizza condimentada a seu gosto e bel-prazer. E mais: que tal pizza seja entregue, para castigo, por um dos tais espíritos rabugentos, bem filmado pelos repórteres de serviço, para que a justa penitência se espalhe e seja conhecida urbi et orbi. Quem sabe, por fim aprenderão eles que o ódio azedo que destilam só contribui para infernizar os dias dos que nos governam e os de todos aqueles que têm a fortuna de assim ser governados.
Beija-lhe as mãos com carinho,
Carlos Fradique Mendes