Trajeto literário

Tendo nascido em 25 de novembro de 1845, na Póvoa do Varzim, Eça de Queirós morreu em 16 de agosto de 1900, em Paris. Os seus primeiros escritos são os de um jovem que, em meados dos anos 60, enuncia um discurso temática e estilisticamente inusitado; são esses textos, publicados na Gazeta de Portugal (1866-67) e postumamente reunidos nas Prosas Bárbaras(1903), que refletem a imagem de um Eça romântico, com tonalidades satânicas e panteístas.

O trajeto literário queirosiano, depois da Gazeta de Portugal e de uma breve experiência como jornalista (no Distrito de Évora), passa pela atividade do Cenáculo, que levou à criação do poeta imaginário C. Fradique Mendes, com Batalha Reis e Antero. Antes das Conferências do Casino, Eça colabora com Ramalho Ortigão n’O Mistério da Estrada de Sintra, obra em que se cruzam o enigmático de extração romântica, o satanismo decadentista, o entramado do relato policial e a análise de costumes. A dimensão de crítica social e de intervenção cívica emerge em Eça sobretudo quando das Conferências do Casino (1871) e da publicação d’As Farpas (1871-1872), estas de parceria com Ramalho; desenrola-se, assim, uma atividade orientada para a reforma de costumes, a exemplo do que fizera o Flaubert de Madame Bovary e sob a influência de Proudhon e de Taine. A aventura d’As Farpas materializa-se num conjunto de folhetos, de publicação periódica, onde Eça e Ramalho fazem o processo crítico da sociedade portu­guesa.

É no estrangeiro, como cônsul em Newcastle e em Bristol, que Eça escreve O Primo Basílio (1878) e O Crime do Padre Amaro (3ª versão: 1880). E é também porque, com exceção de algumas estadias, se encontra ausente de Portugal, que Eça se vai convencendo das dificuldades de uma escrita que exigia observação atenta da realidade. Seja como for, O Primo Basílio corresponde ao fundamental da doutrinação naturalista, pela representação da atmosfera social que envolve a protagonista e pela lógica implacável de desenvolvimento da intriga de adultério. Com O Crime do Padre Amaro refina-se o trajeto naturalista de Eça de Queirós; romance longamente elaborado, O Crime do Padre Amaro tem uma história acidentada, da primeira versão (1875) à terceira (1880). Nesta, pode considerar-se que estamos perante um romance adulto e amadurecido, como resultado da reescrita a que Eça o submeteu: trata-se da história de um padre sem vocação, levado ao seminário por uma aristocrata, padre que é colocado em Leiria, num típico cenário provinciano e beato. O falhanço do projeto Cenas Portuguesas revela a evolução que Eça ia sofrendo, atestada também pela via do silêncio: o escritor deixa por publicar textos que, em diferentes estádios de elaboração, ocupam a sua atenção nos anos 70 e 80, ou seja, A Capital!, A Tragédia da Rua das Flores, O Conde d’Abranhos e Alves & Cª, relatos que contemplavam ainda temas e tipos estreitamente relacionados com a estética realista e naturalista. Isto não significa que esteja radicalmente abolido d’Os Maias o influxo naturalista. Para além disso, Os Maias, sendo aquilo a que é usual chamar-se um “romance-fresco”, ilustram, em registo ficcional, os movimentos e contradições de uma sociedade historicamente bem carac­terizada, incluindo nela o peso de que o romantismo continuava a desfrutar, num tempo de decadência e de crise. Por outro lado, a intriga d’Os Maias – o incesto trágico entre Carlos e Maria Eduarda, conduzindo à dissolução da família – define-se, em relação ao meio social, numa posição de autono­mia. Que esta intriga em nada depende de fatores de ordem material provam-no vários passos em que se insinua uma fatalidade transcendente que encaminha as personagens para um trágico desenlace. O retorno ao genuíno que no final d’Os Maias caracteriza Carlos da Maia remete para Fradique Mendes, figura já tipicamente pós-natu­ralista. Pode dizer-se, aliás, que a atitude crítica cultivada por Fradique decorre do seu posicionamento ideológico em relação a Portugal, à sua cultura e à sua evolução histórica. Para esta personalidade pré-heteronímica, o liberalismo é responsável pela descaracterização dos cos­tumes; a democratização da vida pública, a igualização de comportamen­tos e indumentárias, os hábitos políticos de Lisboa tornam-se insuportáveis para esta figura que não se dispensa, entretanto, de elaborar uma série de notações críticas sobre tipos e costumes do Portugal da Regenera­ção.

O realismo não se elimina, contudo, do horizonte cultural de Eça. Se recuarmos aos anos 80, deparamos com duas obras, O Mandarim e A Relíquia, em que o mítico e o fantástico, o simbólico e o alegórico se combinam com a tendência para a crítica de costumes. A verdade, porém, é que O Mandarim aposta na “moralidade discreta” anunciada no prólogo, mais do que na crítica social propria­mente dita. Com A Relíquia (1887), reafirma-se a tendência para conjugar a observação dos costumes com elementos lendários, míticos e oníricos, de novo com a presença ativa de cenários exóticos: o Egito e a Terra Santa. Agora, no entanto, a história reveste-se de pendor acentuadamente crítico e satírico: Teodorico orienta a sua vida de herdeiro da fanática D. Patrocínio, sob o signo da duplicidade; por fim, A Relíquia desenvolve uma reflexão sobre temas fundamentais que afetam a condição humana: ela é também um relato de moralidade sobre a inutilidade da hipocrisia.

Nas sua últimas obras, Eça contempla elementos históricos, simbólicos e míticos, já em tempo de mudança ideológica. Essa mudança acha-se atestada n’A Cidade e as Serras e n’A Ilustre Casa de Ramires, bem como, de forma enviesada, n’A Correspondência de Fradique Mendes e ainda em textos doutrinários desse tempo: por exemplo, o texto “Positivismo e Idealismo” (1893). Para além disso, a evolução dos movimentos artísticos coevos estimulam uma revivescência ideal­ista que assinala o definitivo colapso do Naturalismo. N’A Ilustre Casa de Ramires, observa-se a reelaboração do realismo crítico, em conjugação com os elementos mencionados. Do que agora se trata é de representar a relação do intelectual com o seu passado ou, noutros termos, a dialética entre tradição e renovação. A Ilustre Casa de Ramires tende a superar uma visão estática e nostálgica da História, num momento em que estavam ainda vivas as sequelas do Ultimato inglês e patente a debilidade portuguesa em fins do século XIX. E assim, o romance parte da História para construir uma mensagem de revitalização dos herdeiros desse passado; para isso, Eça articula a vida monótona de um genuíno fidalgo português, Gonçalo Mendes Ramires, com o episódio histórico relatado na “Torre de D. Ramires”, em que se destaca o antepassado Tructesindo Ramires, exemplo de fidelidade a princípios de lealdade e honra senhorial. Também o romance A Cidade e as Serras é atravessado por ambiguidades. A existência do Jacinto supercivilizado em Paris, observado por Zé Fernandes, contrapõe-se ao regresso a Portugal; no Douro dos seus antepassa­dos, Jacinto reencontra, entre perplexo e fascinado, uma autenticidade perdida. Deste modo, n’A Cidade e as Serras testemunham-se fundamentais preocupações emergentes em finais do século XIX, esboçadas já nos contos Civilização e, mais difusamente, n’A Perfeição. Formulado em termos dialéticos, o romance não se resolve na apologia da pobreza campestre contra os luxos da cidade, porque, nas serras, Jacinto revolta-se contra a pobreza em que vivem famílias miseráveis e procura atenuar essa miséria. Ao mesmo tempo, Tormes entreabre-se à civilização, buscando um equilíbrio que é a síntese do pro­cesso dialético mencionado. Enquanto cultor do romance, Eça de Queirós constitui, na literatura portuguesa, um caso absolutamente invulgar de agilidade técnica e de capacidade de ajustamento da linguagem da narrativa a temas e a motivos que dela careciam.

Eça não se limitou ao culto do romance; no contexto da sua produção, o conto ocupa um lugar também significativo, não raro em conjugação temática com os romances publicados. Para além disso, Eça cultivou ainda a crónica; desde o Distrito de Évora, pode dizer-se que jamais o escritor abandonou um género que requeria uma contínua atenção ao real, nele se exercitando também a atitude do romancista interessado no contemporâneo. Publicações como a Gazeta de Notícias, A Atualidade, a Revista Moderna e naturalmente a Revista de Portugal foram órgãos privilegiados por uma escrita cronística que propiciou aos leitores portugueses e brasileiros um contacto estreito com a vida cultural, política e social da Europa. Convém evocar ainda, de forma sintética, um conjunto de linhas temáticas que na obra queirosiana se acham representadas. O romantismo, em conexão com a condição do escritor e com a educação, é um dos temas dominantes na obra queirosiana; o que não significa uma interpretação linearmente crítica da estética romântica, dado que Eça muitas vezes sentiu, em relação a ela, uma atração que visava sobretudo os seus aspetos mais ousados. De qualquer forma, o romantismo, bem como a educação, relacionam-se diretamente, nas obras de Eça, com a questão da família; a partir d’Os Maias, a tematização da família assume uma dimensão mais profunda e, por isso, menos contingente: ela é, então, a representação, em registo simbólico, de uma comunidade (p. ex.: nacional) ou, pelo menos, de uma sua parcela. No centro da crise da família, estavam a mulher e a questão do adultério, analisadas em função do subtema do bovarismo. Como quer que seja, o adultério, tal como surge em Eça, traduz um juízo crítico severo (e de certa forma parcial) em relação à mulher; mais alargadamente, ele pode ser considerado uma manifestação da decadência que afeta a sociedade burguesa e as suas instituições. Outros temas destacados na produção ficcional queirosiana: o anticlericalismo, preocupação recorrente na geração de Eça, a problemática do amor, a civilização e as suas contradições, o estatuto da literatura e da arte, a dialética cidade-campo, a decadência e a questionação de Portugal e do seu destino histórico. Deste modo, a ficção de Eça, bem como, de modo eventualmente menos elaborado, certos textos publicados na imprensa e não poucas cartas públicas e privadas analisam valores e temas que superam as contingências da literatura de mais forte marcação ideológica, por exemplo, a naturalista.

Os vários aspetos da estética queirosiana que ficaram apontados assumem uma feição distintiva também por força da singularidade do estilo de Eça de Queirós, entendido como fator estruturante de aspetos fundamentais da sua cosmovisão: a ironia, o sarcasmo, a comicidade de figuras e de episódios, a insuperável graça de comentários e descrições, tudo se resolve num estilo de inesgotável vivacidade. A preocupação de Eça com o estilo remete para uma sua outra e mais genérica preocupação, que era a consagrada à forma artística. Um tal cuidado levou o escritor a compor diversas versões de vários dos seus textos (O Crime do Padre Amaro, O Mandarim e A Ilustre Casa de Ramires, por exemplo), versões em que obvia­mente se não modificavam apenas elementos estilísticos, sendo certo, contudo, que, para Eça, a questão do estilo não era uma questão menor. De facto, se houve escritor que obsessivamente se preocupou com o trabalho estilístico, esse escritor foi Eça de Queirós. E contudo, diferentemente de Fradique, Eça ousou escrever e publicar; e o estilo em que o fez, mesmo com as angústias e com os trabalhos que ele exigiu, testemunha a possibilidade de assim se elaborar uma prosa a vários títulos incomparável.

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1 Comentário

  1. thanks for sharing your thoughts. take care.

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