Lendas de Santos

Acaba de ser publicado o volume Lendas de Santos, o título mais recente da série Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós. Trata-se de um contributo significativo para colmatar lacunas e para se tentar chegar o mais perto possível da vontade de Eça de Queirós, no que diz respeito às três narrativas que aqui se encontram. Uma vontade inconclusa, porque estamos perante textos que o grande escritor não deu à estampa e que foram deixados em estádios de desenvolvimento relativamente incipientes.

O plural a que aqui se recorre tem justificação. Os três relatos das chamadas Lendas de Santos, provindo embora de um mesmo paradigma – a narrativa hagiográfica –, apresentam problemas próprios, exigindo soluções distintas às duas editoras, Anna Luiza Bauer e Eliane Hosokawa Imayuki. Com efeito, se num caso, o de S. Cristóvão, dispomos apenas do testemunho da tradição impressa (com a insegurança que isso implica, tratando-se de textos de publicação póstuma), nos outros dois (Santo Onofre e S. Frei Gil) os manuscritos utilizados encontram-se incompletos, por vezes com ordenação confusa e dispersos por diferentes proprietários e arquivos. A isto acresce que, depois de iniciado o trabalho de edição, apareceu um manuscrito autógrafo (o de S. Frei Gil) cuja existência e localização, até há poucos anos, eram desconhecidas. Isso obrigou a retomar, desde o início, a fixação do texto, o que, com óbvia vantagem, permitiu consolidar o relato numa forma diretamente provinda do punho do escritor.

Na circunstanciada introdução de Anna Luiza Bauer e Eliane Hosokawa Imayuki a esta edição, fala-se não apenas do lugar ocupado por estes relatos no cânone queirosiano, como ainda da configuração e da natureza dos testemunhos a que aqui se recorre e que são, grosso modo, dois: o espólio de Eça de Queirós, guardado no Arquivo da Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional, e a tradição impressa, configurada, para os efeitos desta edição, nos volumes Últimas Páginas (1912), Folhas Soltas (1966) e Lendas de Santos (1970).

Com a publicação de Lendas de Santos, a série Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós atinge o seu vigésimo primeiro volume.  Desenvolvida desde os anos 90 do século passado, a Edição Crítica tem beneficiado, como neste caso acontece, da dedicação de investigadores identificados com um labor de salvaguarda patrimonial cuja relevância nem sempre é devidamente reconhecida. Para além disso, estes relatos, apesar de não terem sido inteiramente finalizados por Eça, trazem consigo o talento efabulatório e a cultura hagiológica de um escritor que, já perto do fim da sua vida literária, foi seduzido pela mensagem de vivência cristã e de exemplaridade evangélica de três santos lendários: S. Cristóvão, Santo Onofre e S. Frei Gil.  

São Cristóvão, por Orazio Borgianni (1578-1616)

Sobre a atualidade de Eça

Uma das asserções mais correntes, quando se fala de Eça de Queirós, é aquela que afirma a sua atualidade.  Parecendo um elogio, uma tal afirmação pode ser entendida também como limitação à grandeza do maior romancista português de sempre.

Justamente por ter sido um grande romancista, Eça deu argumentos fortes para que a posteridade sublinhasse a atualidade das suas personagens, em particular a de alguns dos tipos que configurou e que, segundo se diz, “reencontramos” nos nossos dias. Nalguns casos, estamos perante algumas das mais impressivas personagens da literatura portuguesa e mesmo para além dela, até onde alcanço.  

Negar isto é desconhecer o contexto e a funcionalidade da personagem na literatura oitocentista, com menorização da dimensão e do significado de figuras queirosianas inesquecíveis.  Por exemplo: Juliana e o conselheiro Acácio, n’O Primo Basílio; o padre Amaro, no romance que leva o seu nome; D. Patrocínio das Neves e o seu sobrinho Teodorico Raposo, n’A Relíquia; Maria Monforte, João da Ega e Tomás de Alencar, n’Os Maias; Gonçalo Mendes Ramires, n’A Ilustre Casa de Ramires; a díade Jacinto/Zé Fernandes, n’A Cidade e as Serras. Todos estes e ainda, noutro plano de construção, aquele Carlos Fradique Mendes que, em ambiente finissecular, faz a transição pré-modernista da personagem fechada nos limites ficcionais do romance para uma existência autónoma e em diálogo quase explícito (às vezes, explícito mesmo) com quem o concebeu.  

É isto suficiente para reconhecermos a relevância e, eventualmente, a universalidade de personagens de Eça? Penso que sim, mas, se houver dúvidas, convoco para o debate o conselheiro Acácio. Trata-se, porventura, de uma das figuras que, em toda a literatura portuguesa, mais frequentemente tem sido objeto de representações noutras artes e noutros estilos, com destaque para a caricatura, em gravura ou noutras técnicas, já para não falar de refigurações no teatro, no cinema ou na televisão.  Mas não só isso.

Juliana, por António

A língua portuguesa deve ao conselheiro Acácio uma palavra já dicionarizada, acaciano, vocábulo que designa o formalismo oficial (Eça dixit), a convencionalidade dos gestos e das falas e a hipocrisia moral que nele brilham. E tal como acaciano, também acácico (no dicionário Houaiss) e mesmo outros termos derivados estenderam a personagem para lá dos limites da ficção.

Parece banal, mas não é. Lembremo-nos do que significam hamletiano, edipiano, quixotesco, bovarista ou mefistofélico e aceitaremos o seguinte: começa com esse impulso para a inventiva vocabular a chamada sobrevida da personagem. Por alguma razão Unamuno escreveu um dia que se sentia mais quixotista do que cervantista, como se a personagem superasse o seu autor.

Julgo que, ao engendrar as suas personagens – muitas, como é natural, observadas numa realidade que a ficção modelizou –, Eça talvez desejasse cumprir o que um grande escritor ambiciona: projetar para o futuro aquilo que nalgumas delas havia de potencial transcendência, um estádio superior da chamada sobrevida. Digo-o como hipótese, porque não tenho a invejável capacidade que alguns possuem para penetrar na mente queirosiana, tantos anos depois da sua morte. Por isso, prefiro pedir ajuda ao escritor, para representar a convicção de que ele efetivamente buscava uma atualidade intemporal e abstrata, indo além do imediatismo que se fica por isto: a personagem A é a pessoa B. E também: os tipos queirosianos do político, do jornalista ou do poeta prolongam-se em tais ou tais figuras e situações que nos são contemporâneas.

Operar nestes termos é cultivar uma ideia linear da ficção narrativa, como se ela não fosse, antes de tudo, um fenómeno de linguagem. Que o mesmo é dizer, de mediação de uma certa visão do mundo e dos homens, com recurso a dispositivos de representação que desmentem aquela linearidade. Em sentido inverso, poderia dizer-se quase o mesmo, quando se trata de increpar o escritor (Eça ou qualquer outro) que, vivendo num tempo específico, com os valores que lhe são próprios, terá frustrado uma outra atualidade, ao não contemplar preocupações e temas do nosso tempo. Por exemplo: a crítica d­­o colonialismo, do eurocentrismo e do racismo ou as questões de género. Um tal reparo coloca-nos no campo do mais radical anacronismo e dos inerentes preconceitos interpretativos.

A verdade é que Eça de Queirós pensou a atualidade das suas obras e de algumas das suas personagens, mas recusou aquela ideia linear de que falei; como tal, rejeitou hipóteses de leitura condicionadas por um entendimento primariamente “utilitário” e pouco ambicioso da literatura. Recordo um episódio conhecido: em 1889, Eça escreveu uma carta pública destinada a rebater uma acusação que lhe havia sido endereçada por Pinheiro Chagas (sempre este homem fatal!, como ele disse). Segundo tal acusação, a personagem Tomás de Alencar, d’Os Maias, seria um retrato caricatural de Bulhão Pato, um poeta associado ao segundo romantismo e àquilo a que, mais de vinte anos antes, Antero de Quental chamara a “literatura oficial”. Atualmente, de Pato tem-se apenas a memória de uma receita de amêijoas, que lhe é atribuída, mas, em 1889, não era tanto assim, de modo que Eça teve de responder.

Não procuro agora saber se, factual e empiricamente, a acusação era justa, embora eu tenha a minha própria crença que, por ser apenas isso, não vem ao caso. Interessa-me a negativa clara de Eça (ou seja, Alencar não é Bulhão Pato e será até outro poeta deixado no anonimato) e sobretudo o que vem depois. Segundo o magistral autor d’Os Maias, podemos eventualmente colher, da leitura da personagem, parecenças naturais com alguém (um romancista olha para a realidade…), no concreto dos seus comportamentos; importa, todavia, no caso de Alencar (e não só no dele, claro), reter atributos de outra natureza: “A lealdade, a honestidade impecável, a bondade, a generosidade, a alta cortesia de maneiras”, conforme Eça declara, nesse texto aparecido no jornal O Tempo. E acrescenta: “Os traços de superfície” são secundários; “o que diferença e caracteriza os homens – é o seu modo de ser moral, o conjunto das qualidades e dos defeitos”.

A atualidade de Eça  tem, então, dois rostos, um deles vistoso, mas efémero, o outro discreto, mas muito mais consequente, pela sua intemporalidade. O vistoso: aquela atualidade que se deduz de procedimentos de identificação, como ajuda à navegação, tal como um GPS nos conduz a um lugar preciso. E assim, esta personagem era tal pessoa, este lugar ficcional continua igual, na realidade que conhecemos, uma certa ação narrativa repete-se nos nossos dias, em comportamentos que observamos. O mundo da política é, diga-se de passagem, o alvo predileto destes trajetos pseudo-interpretativos de fôlego curto, induzindo até afirmações atribuídas a Eça – mas que, em certos casos, são inventadas.

A segunda atualidade remete para grandes sentidos ético-filosóficos que transcendem o escritor, a sua obra e o seu tempo. Em romances e em contos de Eça, lemos, evidentemente, crítica social, em regime irónico e até satírico, mas devemos passar a outro nível: o da reflexão sobre o amor, os seus enganos e os seus desenganos, sobre o sentido da vida, sobre a ambição humana e as suas frustrações, sobre o desamparo dos homens (e das mulheres, claro) perante poderes instituídos, sobre a fugacidade do tempo, sobre os excessos da técnica e da ciência, sobre os apelos da Natureza, sobre o peso da História, sobre a densidade da memória, sobre as contradições da condição humana, etc. Tudo isto modelado por um estilo como outro não há.

O que aqui deixo sugerido (e muito mais) está em Eça, fazendo dele um escritor de alcance universal. Esse alcance perde-se irremediavelmente, se nos ficarmos por aquela primeira e empobrecida aceção da atualidade queirosiana. A ser assim, arriscamo-nos a ouvir de novo o mordaz pedido de Eça a Bulhão Pato, rogando “o obséquio extremo de se retirar de dentro do meu personagem”. 

Jornal Público, 24 de setembro de 2023.

De novo: dançar Eça. Dança em Diálogos

Ao escolherem O Primo Basílio como base de referência para um bailado em dois atos, Solange Melo e Fernando Duarte aceitaram um desafio arriscado, mas certamente sedutor. Em primeiro lugar, trata-se de um dos romances mais conhecidos de Eça, tendo dado lugar, desde a sua publicação em 1878, a incontáveis e por vezes desencontradas interpretações. Em segundo lugar, tal como acontece com outros relatos queirosianos, a história d’O Primo Basílio projeta-se sobre um fundo social formado por personagens com escassa intervenção na intriga, mas extremamente sugestivas (Eça sinalizou isso mesmo, na conhecida carta a Teófilo Braga, de 12 de março de 1878); o conselheiro Acácio é, por certo, o caso mais flagrante da capacidade de uma figura ficcional para transcender a narrativa que lhe deu vida. Em terceiro lugar, O Primo Basílio encerra não uma, mas duas intrigas que se sucedem no romance: a que está centrada no adultério de Luísa, com coloração bovarista, e a que decorre dela, concretizada na chantagem exercida por Juliana.

Com razão, a versão coreografada por Fernando Duarte fixou-se nestas duas intrigas que surgem, como no romance, em sequência e por aquela razão que Machado de Assis apontou na sua famosa crítica a O Primo Basílio: sem a chantagem, a adúltera ficaria impune. O bailado convoca, então, seis personagens: Luísa (Margarida Trigueiros), Basílio (João Reis), Juliana (Cristina Maciel), Jorge (Joshua Feist), Leopoldina (Carlota Rodrigues) e Sebastião (Pedro António Carvalho). Deixando de lado eventuais limitações de produção, esta opção induz uma concentração narrativa que é, a meu ver, uma das qualidades deste trabalho e um argumento importante para o seu êxito.

Importa observar o seguinte: a coreografia desenhada para O Primo Basílio soube escolher os momentos exatos da intriga (aquilo a que outrora se chamava funções cardinais), para representar, nos movimentos da dança, o drama de Luísa. A partida de Jorge, a chegada de Basílio, a troca e o extravio de cartas, o roubo destas por Juliana e assim por diante, até à morte de Luísa são momentos decisivos de uma intensa ação dramática cujo resultado artístico, nesta adaptação, pode sintetizar-se assim: sem subverter a ação do romance, nem os seus sentidos dominantes (o impulso bovarista de Luísa, o cinismo donjuanesco de Basílio ou a perversidade socialmente motivada de Juliana), o bailado assume uma autonomia que respeita e potencia as lógicas e os protocolos formais da dança teatral.

Para além disso, a sobrevida de Luísa e Basílio, de Juliana e Jorge, de Leopoldina e Sebastião, no bailado que os seus corpos configuram, traduz uma outra e bem legítima leitura Eça de Queirós; uma visão não conservadora da literatura e das adaptações a que ela dá lugar só pode congratular-se com esta proposta artística. E assim, O Primo Basílio, romance que tem conhecido múltiplas e inesgotáveis interpretações, surge-nos como sendo ainda o mesmo e contudo já outro.

(Dia 11 de fevereiro, às 16 horas, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra).

Interlocuções: a personagem queirosiana

Em “Fazer boa figura: a personagem queirosiana de corpo inteiro”, analisa-se uma interlocução que parte da receção brasileira de textos e de personagens de Eça refiguradas em contextos e em linguagens outras, que não a linguagem literária. No teatro, na televisão e no romance gráfico, O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro e A Relíquia foram objeto de transposições intermediáticas que levam a refletir sobre os termos em que tais obras e as suas personagens devolvem à procedência (ao ponto de partida português, entenda-se) imagens refeitas. São essas imagens refeitas que de certa forma interpelam, em interlocução e de um ponto de vista crítico ou meramente evocativo, a mensagem original de Eça.

Génese d’A Relíquia

A história literária d’A Relíquia compreende vários episódios de natureza distinta, mas articulados entre si:  a escrita e a reescrita do texto, as diligências no sentido da sua publicação, os formatos e os media em que o relato apareceu e a constituição de uma tradição impressa, em vida do escritor. Antes disso ou em simultâneo, A Relíquia vai sendo construída pela aquisição, por parte do escritor, de leituras, de referências culturais e de elementos informativos de natureza diversa. E também, é claro, pelo que terá ficado – observações, apontamentos, etc. – da viagem ao Egito e à Palestina e das experiências de escrita que ela propiciou.

Teodorico Raposo, por António

Tendo em atenção aquilo que aqui interessa, não estão em causa os incidentes e os pormenores concretos dessa viagem, na minuciosa reconstituição do seu desenrolar, mas sim as projeções escriturais que ela terá suscitado. Longe de conduzirem direta e linearmente à história genética d’A Relíquia, na aceção estrita que a expressão envolve, tais projeções atestam, todavia, o impulso narrativo e descritivo que a  viagem potencia; ela pode, com efeito,  ser entendida como  contributo remoto para um relato com o fôlego daquele que aqui está em causa.  

Seja como for, não é possível ignorar que, em 1869, Eça empreendeu uma jornada com repercussões decisivas no seu futuro literário. Ocorreu essa jornada num momento histórico conhecido: a 17 de novembro daquele ano, era inaugurado o Canal do Suez, gigantesca obra de engenharia que haveria de mudar os equilíbrios estratégicos mundiais, nos planos político e económico e no que toca às  relações da Europa com o Oriente. Eça estava lá, com o seu amigo e futuro cunhado, o conde de Resende, e disso deixou registo, em vários textos, em esboços de textos ou apenas em projetos, que tiveram desenvolvimentos e sortes diferentes.  

Procedendo como repórter de viagem, Eça deu notícia dos episódios da inauguração do Canal de Suez no Diário de Notícias. Em quatro números do jornal, de 18 a 21 de janeiro de 1870,  o romancista ainda em formação fez, como ele mesmo disse, “a narração trivial, o relatório chato das festas de Port Said, Ismailia e Suez.” (“De Port Said a Suez”, in Notas Contemporâneas. Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 5).  Publicado pela primeira vez em livro por Luís de Magalhães, no volume de dispersos Notas Contemporâneas (1909), este conjunto de crónicas integrará o volume O Egito e outros relatos desta edição crítica. Na abertura daquelas crónicas, Eça  anunciou um projeto: “Talvez em breve diga o que é o Cairo e o que é Jerusalém na sua crua e positiva realidade, se Deus consentir que eu escreva o que vi na terra dos seus profetas” (“De Port Said a Suez”, loc. cit., p. 5). De acordo com  um testemunho de Ramalho Ortigão, o jovem escritor perspetivava então um livro de título prometedor,  Jerusalém e o Cairo,  livro  esse que nunca chegou a ser  publicado.

(Da introdução a E. de Queirós, A Relíquia. Edição de Carlos Reis e Maria Eduarda Borges dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional, 2021, pp. 26-27)

A Relíquia: edição crítica

A edição crítica d’A Relíquia que agora se publica integra-se numa série editorial que chega ao seu vigésimo volume. A presente publicação é, então, o resultado parcial de um projeto de investigação designado como Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, projeto desenvolvido desde há quase três décadas, com a colaboração de alguns dos mais destacados estudiosos em matéria queirosiana; trata-se, como é sabido, de rever e de fixar o cânone textual queirosiano, objeto de percalços vários, desde o tempo de Eça e por razões que os títulos já publicados têm procurado esclarecer. Para além disso, a Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós propõe-se fazer a história de cada texto, entendida como contributo decisivo para incutir segurança e fundamento àquela revisão.

O romance A Relíquia, publicado pela primeira vez em 1887, ocupa um lugar singular na produção literária queirosiana. Estamos perante uma obra que se se situa na linha da literatura e do pensamento anticlericais, muito férteis no século XIX, e que diretamente se relaciona com as resistências e com as contradições que a laicização da vida pública portuguesa enfrentou, desde o advento do Liberalismo. Por isso, a história do texto, no caso d’A Relíquia, não pode deixar de contemplar esta que é uma questão com larga tradição na cultura portuguesa.

O relato em que Eça quis pôr “o manto diáfano da Fantasia” sobre “a nudez forte da Verdade” tem uma outra história, esta de caráter pessoal. Liga-se ela à experiência do escritor como viajante e à digressão que, ainda jovem, fez por terras do Egito e da Palestina. Muito do que ficou dessa jornada está projetado no texto d’A Relíquia e ainda em abundantes e quase sempre saborosas notas de viagem, muitas delas deixadas inéditas. Na época, estava ainda bem viva uma sensibilidade romântica que não resistia ao forte apelo das origens do Cristianismo, nos lugares exóticos que foram o seu berço. Eça não desprezou esse apelo.

(“Nota Prefacial”; Eça de Queirós, A Relíquia. Edição de Carlos Reis e Maria Eduarda Borges dos Santos. Lisboa: Imprensa Nacional, 2021, pp. 11-12)

Eça diplomata

Eça tradutor

A edição crítica que aqui se publica corresponde à tradução, por Eça de Queirós, de uma peça teatral, Philidor, da autoria do dramaturgo francês Joseph Bouchardy (1810-1870). Trata-se de uma comédia-drama que consiste num prólogo e quatro atos. Tanto o texto original francês como a tradução para português são textos pouco conhecidos. Com efeito, o texto francês só teve uma publicação, sendo incluído na revista Théâtre contemporain illustré, editada por Michel Lévy Frères, em fevereiro de 1863, pouco tempo depois da primeira representação, em 3 de janeiro de 1863, no Théâtre de la Gaîté em Paris. O texto português não chegou a ser representado e só foi editado por Pedro da Silveira, na editora Livros do Brasil, com duas impressões idênticas datadas de 1982 e 2004.

Como era costume nas décadas de 50 e 60 do século XIX, a tradução da peça terá sido encomendada pela direção do Teatro Nacional Dona Maria II, onde se encontra atualmente o manuscrito. Traduzir peças estrangeiras, principalmente francesas, para representação nos palcos lisboetas, era uma das maneiras em voga para tentar remediar a escassa produção dramática portuguesa, cujo reportório, no fim das décadas de 50 e 60, era maioritariamente sofrível e medíocre. A título de exemplo, no ano 1869, de um total de 132 peças representadas nos teatros da Trindade e D. Maria II, 84 eram portuguesas e 48 francesas.[1] É muito provável que a tradução de Philidor date de 1869; ela foi anunciada na Crónica dos teatros de 28 de fevereiro de 1870, sendo um dos primeiros trabalhos que terá ocupado Eça de Queirós, logo depois de terminar os seus estudos em leis em Coimbra e a seguir à colaboração na Gazeta de Portugal e à aventura jornalística do Distrito de Évora[2]. Como está indicado na primeira folha do manuscrito, a peça foi destinada ao Teatro Nacional Dona Maria II, “sendo julgada digna disso”, e supomos que Eça terá enviado o manuscrito ao teatro onde tem permanecido até aos nossos dias, salvando-se do incêndio que destruiu o D. Maria II em 1964.


[1] Crónica dos teatros, 17 de março de 1870, p. 3

[2] Cf. Eça de Queirós, Textos de Imprensa I (da Gazeta de Portugal. Edição de Carlos Reis e Ana Teresa Peixinho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004; Eça de Queirós, Textos de Imprensa II (do Distrito de Évora. Edição de Ana Teresa Peixinho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2019.

Kathryn Bishop-Sanchez, introdução à edição crítica de Philidor. Lisboa: Imprensa Nacional, 2021, p. 17.

Eça: antes e depois das Conferências

Hoje, às 16h30: https://www.fileli.unipi.it/c/210527-150-anos-confdem

Eça e os pobres de léxico

Mas diz V. na sua carta –  que não é tanto este antiquado tolo, que o aflige –  mas o purista  do tipo moderno, que, num livro,  aprecia a ideia, a análise, a intenção, a vida das personagens, como um critico do seu tempo, e depois  a respeito de forma,  de passagem, desculpando-se da caturrice, acrescenta, que a construção  é lamentavelmente francesa, o vocábulo pobre, o galicismo fervilhante, e que é uma pena  que V. não saiba escrever a sua língua.  E V. pinta o tipo: «moço,  inteligente, espirituoso, cultivado, afrancesado, moderno, e, no meio de tudo isto, purista!» (…)

V. em todo o caso é infinitamente menos rico em termos que esses,  seus três ilustres colegas [Ramalho Ortigão, Oliveira Martins e Camilo Castelo Branco].  No entanto não se aflija por isso, nem continue  a ler o dicionário, menos ainda os clássicos. Essa questão de riqueza de Lexicon  tem sido já muito estudada – e decidida. E a decisão é esta –  Bem-aventurados os pobres de Lexicon  porque deles é o Reino da Glória. 

Carlos Fradique Mendes, “Carta a E.”, in A Correspondência de Fradique Mendes. Edição crítica por C. Reis, Irene Fialho e M. João Simões. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2014, pp. 340-341 e 344.

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