De novo: dançar Eça. Dança em Diálogos

Ao escolherem O Primo Basílio como base de referência para um bailado em dois atos, Solange Melo e Fernando Duarte aceitaram um desafio arriscado, mas certamente sedutor. Em primeiro lugar, trata-se de um dos romances mais conhecidos de Eça, tendo dado lugar, desde a sua publicação em 1878, a incontáveis e por vezes desencontradas interpretações. Em segundo lugar, tal como acontece com outros relatos queirosianos, a história d’O Primo Basílio projeta-se sobre um fundo social formado por personagens com escassa intervenção na intriga, mas extremamente sugestivas (Eça sinalizou isso mesmo, na conhecida carta a Teófilo Braga, de 12 de março de 1878); o conselheiro Acácio é, por certo, o caso mais flagrante da capacidade de uma figura ficcional para transcender a narrativa que lhe deu vida. Em terceiro lugar, O Primo Basílio encerra não uma, mas duas intrigas que se sucedem no romance: a que está centrada no adultério de Luísa, com coloração bovarista, e a que decorre dela, concretizada na chantagem exercida por Juliana.

Com razão, a versão coreografada por Fernando Duarte fixou-se nestas duas intrigas que surgem, como no romance, em sequência e por aquela razão que Machado de Assis apontou na sua famosa crítica a O Primo Basílio: sem a chantagem, a adúltera ficaria impune. O bailado convoca, então, seis personagens: Luísa (Margarida Trigueiros), Basílio (João Reis), Juliana (Cristina Maciel), Jorge (Joshua Feist), Leopoldina (Carlota Rodrigues) e Sebastião (Pedro António Carvalho). Deixando de lado eventuais limitações de produção, esta opção induz uma concentração narrativa que é, a meu ver, uma das qualidades deste trabalho e um argumento importante para o seu êxito.

Importa observar o seguinte: a coreografia desenhada para O Primo Basílio soube escolher os momentos exatos da intriga (aquilo a que outrora se chamava funções cardinais), para representar, nos movimentos da dança, o drama de Luísa. A partida de Jorge, a chegada de Basílio, a troca e o extravio de cartas, o roubo destas por Juliana e assim por diante, até à morte de Luísa são momentos decisivos de uma intensa ação dramática cujo resultado artístico, nesta adaptação, pode sintetizar-se assim: sem subverter a ação do romance, nem os seus sentidos dominantes (o impulso bovarista de Luísa, o cinismo donjuanesco de Basílio ou a perversidade socialmente motivada de Juliana), o bailado assume uma autonomia que respeita e potencia as lógicas e os protocolos formais da dança teatral.

Para além disso, a sobrevida de Luísa e Basílio, de Juliana e Jorge, de Leopoldina e Sebastião, no bailado que os seus corpos configuram, traduz uma outra e bem legítima leitura Eça de Queirós; uma visão não conservadora da literatura e das adaptações a que ela dá lugar só pode congratular-se com esta proposta artística. E assim, O Primo Basílio, romance que tem conhecido múltiplas e inesgotáveis interpretações, surge-nos como sendo ainda o mesmo e contudo já outro.

(Dia 11 de fevereiro, às 16 horas, no Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra).